Izabella Teixeira*
Mônica Sodré**
Atrasados! A denúncia da demora em fazer acontecer os compromissos e as responsabilidades no enfrentamento à crise ambiental planetária, notadamente em tempos de emergência climática, tem lugar comum nas sociedades em todo planeta. As críticas acentuam-se quando das impostas contradições do curto-prazo e do lidar com a urgência do presente. O prevalente domínio energético dos combustíveis fósseis, o desmatamento dos ecossistemas florestais, assim como a estrutura político-econômica associada, marcam os campos de disputa geopolítica, econômica, social e tecnológica no lidar com a crise ambiental planetária. Se os problemas, suas origens e impactos são de domínio de todas as sociedades, as soluções para o enfrentamento e a transformação urgente e necessária não o são. Ou ainda, segundo a ciência, os impactos da crise ambiental planetária também são e serão assimétricos tanto na natureza quanto à humanidade.
O fato central é que temos o Planeta sob uma pressão sem precedentes. O termo Grande Transição é cunhado nos anos de 2005, como nos lembra Thomas Friedman, para capturar a interconectividade entre as 3 acelerações que se impactam e se retroalimentam mutuamente: tecnologia, globalização e as mudanças do clima. São tempos marcados pela contradição, incerteza, caos e complexidade. Passam, então, a requerer uma ciência pós-normal, ou seja, uma ciência que lida com fatos incertos, valores em disputa, grandes interesses e decisões urgentes.
O esforço (geo)político global de construção e de aprovação do Acordo de Paris não encontra as mesmas condições político-institucionais nos tempos de sua implementação. O mundo de 2015 mudou. A governança ambiental-climática é refém da transição do multilateralismo e está, progressivamente, exposta e (inter)dependente das ações de governos fora das estruturas das Nações Unidas.
Enquanto a sociedade global lida com a transição dos sistemas de poder geopolítico e econômico, a natureza impõe, de maneira cada vez mais incisiva, a urgência da transformação da relação do homem com o meio ambiente. As evidências se expressam pelos eventos de extremos climáticos mais frequentes e intensos, pela acelerada perda da biodiversidade e esgotamento dos recursos naturais. Os dias atuais já denunciam mudanças (possíveis) sobre as condições futuras de vida no planeta e tornam evidente a perspectiva da Era do Antropoceno[1]. Passamos a ter pressa! Passamos a ficar expostos à urgência do presente.
Assim sendo, a história ecológica do mundo registra mudanças das condições naturais em um ritmo sem precedentes, muitas delas em caráter irreversível e ameaçadoras da vida no planeta.
A Natureza viva é um valor universal e está sob intensa pressão em nossos tempos, com potencial extinção ou desaparecimento de metade das espécies de fauna e de flora até o final deste Século e com potencial de extinção da fauna e da flora na ordem de 25% no próximo meio século. É tão ameaçador que se quer poderemos brincar de Deus, como diria June Goodfield, ou seja, cuidarmos da nossa própria evolução.
O desafio imposto à ciência é o de estudar cada vez mais a biosfera, complexa e desafiadora. A incerteza e a complexidade do lidar com a natureza referenciam os limites do papel político da ciência. Há a necessidade de uma nova grandeza no modo de ver a vida e nunca isso foi tão evidente na perspectiva do nosso tempo de existência.
Para isso, o homem precisa se ver parte da natureza e reconhecer a dimensão socioambiental da crise planetária. As soluções baseadas na natureza trazem a perspectiva de sociedades mais justas, inclusivas, resilientes e de buscar o bem-estar tendo a natureza como uma aliada. No entanto, a verdade precisa ser encarada e não negada: o mundo natural que conhecemos não está só em transformação. Está mudando numa velocidade sem precedentes, sendo redefinido dramaticamente e de maneira inacabada.
Não se trata do fim do futuro, antes percebido, confortavelmente, com uma quase projeção linear do passado. O futuro mudou, os tempos mudaram, a humanidade e os seus sistemas políticos e econômicos precisam mudar. Já não podemos mais projetar o futuro com base no que conhecemos, no que vivemos. Se o século XXI vai ser diferente do século passado, o que então define a transição? Rupturas no modo de viver e de ter, possivelmente. Esgotamento dos paradigmas de desenvolvimento? Certamente! Disputas e conflitos por recursos naturais, provavelmente, assim como realidades caóticas. E as perspectivas de inclusão política e de reestruturação dos sistemas políticos, das escolhas individuais e coletivas? A ver como vamos lidar com a convergência das eras climática, digital-tecnológica e biológica e a cidadania contemporânea que pode ou precisa emergir.
A sociedade global tem mais consciência das novas exigências da natureza do que a maioria dos governos e seus dirigentes. Está cada vez mais presente falarmos de mudança, mas sem desejar muitas vezes a verdade que determina as escolhas à mudança. Ou vamos preferir a ironia das fake News tão bem exploradas por falsos líderes, pela ignorância agressiva e pelo negacionismo? Há novas ideologias ou seremos mobilizados por causas? A busca pelo comum, pelo simples pode ser vista como um modo emergente de viver resultante dos padrões sustentáveis de produção e de consumo? Teremos uma metamorfose das estruturas produtivas?
Há dois tempos, duas Terras como diz o psicanalista Jorge Forbes. Uma que se esgota e outra que se insinua. Uma que fala da razão asséptica e a outra que fala da razão sensível. Uma que fala de um futuro como projeção do presente; a outra que fala de um futuro que se inventa todo dia, de uma geração que corrige a rota o tempo todo. Não existe nada estável para essa geração que emerge. Não parece existir nada estável para o planeta resiliente.
É preciso ir além do medo e lidar com a transição da natureza, ir muito além do que já fizemos como sociedades e como indivíduos. Passamos a ter de lidar com realidades que se insinuam como as fronteiras planetárias, os bens comuns, os riscos climáticos e o crescimento da população mundial marcando transformações profundas que já influenciam e continuarão a influenciar o nosso jeito de viver e as nossas vidas.
Mesmo lidando o mais cedo possível essa transição do jeito de viver, o risco ambiental-climático deverá estar cada vez mais presente nas disputas de poder, conflitos e guerras. As populações vão procurar outros espaços, novas ondas migratórias, novas demandas e pressões sobre os recursos naturais. O acesso à água certamente terá protagonismo neste século. E o Estado, usual provedor de respostas, não terá como eliminar todos os riscos. Em destaque, a resiliência do planeta e a resiliência da humanidade.
A atual década experimenta nos seus três primeiros anos três crises com impactos globais: a pandemia da COVID-19, a guerra na Europa entre Rússia e Ucrânia e a recente guerra no Oriente Médio entre Israel e o Hamas. A desconfiança é que o mundo empacou e desconhece ou deseja ignorar, de forma agressiva, a contemporaneidade. Não há mais tempo a ser comprado quando o mundo experimenta os efeitos do aumento de 1,20 graus C na temperatura média da superfície da Terra. A ambição de mudança deve também pautar o curto prazo e não somente os horizontes de 2050 a 2070.
Para isso, é preciso a emergência de lideranças orientadas por soluções, conhecimento, inovação & tecnologia e solidariedade. A mudança de rumos é inevitável por imposição da própria natureza e não pela conscientização das lideranças políticas globais. A ciência emerge como ator político e anuncia as novas fronteiras ambientais, climáticas e tecnológicas que regem a ordem global planetária. As sociedades em movimento revelam outras e novas fronteiras como as de gênero, das desigualdades sociais e da democracia. O choque de contradições é inevitável. Escolhas precisam ser feitas!
Diante dessas escolhas a serem feitas, democracia importa. A experiência histórica demonstra que são esses os regimes capazes de promover melhores resultados em equidade de gênero, respeito a direitos humanos, crescimento econômico, ambiente para se fazer negócios e maiores índices de respeito ao meio ambiente. Seu elemento diferenciador é significativo, em especial num momento do mundo em que guerras proliferam: a crença civilizatória de que minorias devem ter seus direitos, de existência à expressão política, preservados. Apesar disso, democracias não são o único jogo na cidade e em pouco mais de três séculos assistimos a três ondas de democratização, cada uma delas seguida de uma reversa, de autocratização, evidenciadas em totalitarismos, guerra fria, e surgimento de novos populismos adversários da democracia liberal, fenômeno esse bastante recente.
Se o retrospecto histórico poderia nos tranquilizar diante do movimento pendular dos regimes ao longo do tempo, há elementos novos sobre a mesa. De um lado, democracias consolidadas, responsáveis pelos pilares de sua expansão pelo globo, dão sinais evidentes de fragilização e erosão, num momento em que a confiança nos políticos, nas pessoas e nas instituições também. De outro, assistimos a expansão de regimes não livres ou parcialmente livres, alcançando atualmente 70% da população mundial. Não há nada no horizonte que nos permita afirmar que o futuro do mundo será mais democrático que o presente. Ao mesmo tempo, o poder econômico mundial está mudando de mãos: quase metade do PIB global atual encontra-se concentrado em regimes autocráticos, ao mesmo tempo em que a participação das democracias no comércio internacional caiu de 74% em 1998 para 47% em 20221.
Além disso, e substantivamente nova, democracias se deparam com a crise da natureza que se traduz numa ameaça justamente às bases do próprio regime: sua capacidade de garantir direitos. Seja o direito de pessoas viverem num determinado território, que se tornou inóspito a presença humana pela exaustão da capacidade de gerar e acomodar vida, ou até mesmo direito de existência, diante de um cenário de insegurança hídrica e alimentar, a capacidade das democracias de protegerem e proverem direitos a seus concidadãos estará sob stress, com potencial aumento de conflitos e convulsões sociais ao redor do globo. Ainda, considerando a relação existente entre crescimento econômico e democracia, com a probabilidade de retrocesso democrático aumentando à medida em que atividade econômica e o padrão de vida caem, o crescimento econômico negativo de alguns países em decorrência do impacto de eventos extremos pode fragilizar sobremaneira democracias com baixos níveis de renda. Inequivocamente, o século 21 tornou o clima uma agenda das democracias.
Por parte de governos e sociedades, ao falar de escolhas e da capacidade de influenciar as decisões delas advindas, é preciso entender, inicialmente, que o contexto global da crise ambiental planetária não faz distinções políticas e origina-se independente dos regimes políticos vigentes. Acomete democracias e autocracias e expressa, ao menos, duas naturezas de desigualdades. A primeira entre países, uma vez que o enriquecimento das nações se deu justamente assentado numa lógica extrativista e acumuladora e na predação de recursos naturais e de ecossistemas. Sempre às custas da exploração do capital natural e humano, alguns países adotaram rotas de desenvolvimento mais bem sucedidas na acumulação de riquezas que outros.
De outro, as desigualdades intra-países, com parte da população mundial fora da economia intensiva em carbono diante da exclusão no acesso à eletricidade, alimentação e habitação. No entanto, essa população não somente não está excluída dos impactos resultantes da crise ambiental, como também não reúne as condições necessárias à resiliência e à adaptação às novas condições de viver num planeta em mudança.
São justamente essas desigualdades que ameaçam as democracias contemporâneas e se traduzem na descrença com representantes eleitos e na baixa confiança no cumprimento de promessas das democracias de entregar melhor qualidade de vida a seus cidadãos. Junta-se a esse contexto a perspectiva de comunidades vulneráveis à crise com a natureza, à necessidade de lidar com riscos e incertezas, a longevidade do homem e a demanda adicional por recursos naturais, serviços públicos e renda.
É importante considerar distintamente as perspectivas que envolvem a sociedade global versus a crise climática e a democracia e a crise climática. Na perspectiva da sociedade versus as mudanças do clima, temos um contexto político complexo onde a ausência de confiança e de credibilidade pauta as negociações internacionais para pôr em prática o Acordo de Paris. Os esforços tímidos para fazer avançar a transição climática são expostos às contradições de curto-prazo que expressam a resistência de mudança e a ausência de alternativas para todos os países realizarem essas mudanças. Essa situação é, particularmente, traduzida nas agendas de transição energética versus segurança energética, de segurança alimentar e nutricional e erradicação da fome/pobreza e de adaptação às mudanças do clima.
A transição energética revela (ainda) a forte dependência do mundo dos combustíveis fósseis e, contudo, as soluções possíveis de descarbonização do sistema global de energia distantes do sistema econômico e financeiro internacional e dos interesses geopolíticos de compartilhamento de tecnologias associadas. As crises da pandemia da COVID-19, da guerra contra Ucrânia e a recente guerra envolvendo Israel acabam por revelar as contradições dos países em torno da ambição da transição energética e a prioridade de viabilizar, no curto prazo, a segurança energética. A permanência dos combustíveis fósseis na matriz energética global implica na contratação de uma nova temporada da crise climática, com emissões adicionais para os já críticos cenários de aquecimento global.
A segunda agenda, de segurança alimentar e nutricional e erradicação da fome e pobreza, encerra um quadro social, econômico e ambiental complexo por denunciar a degradação da natureza traduzida pelo desmatamento dos ecossistemas florestais, a poluição ambiental, a perda da biodiversidade e o desperdício acentuado de recursos naturais, notadamente a água e os solos, além do peso histórico da exclusão política e das desigualdades sociais. A pobreza e a fome num mundo que desperdiça alimentos e que produz assimetrias profundas na segurança alimentar e nutricional no presente e no futuro expõem um dos lados mais críticos da crise com a natureza. Territórios produtores de alimentos estão ameaçados pelos efeitos das mudanças do clima. Além disso, o desafio de produzir alimentos, tendo a natureza como aliada, para uma população global estimada em 10 bilhões de pessoas em 2050 é transformador em si. Fazê-lo em tempos de emergência climática requer ir além da superação do desmatamento e do incremento tecnológico e determina um olhar ampliado para os direitos das populações tradicionais e vulneráveis e para os territórios protegidos ou que demandam proteção do capital natural.
Um novo olhar sobre o presente é necessário para lidar com a dimensão dos desafios que a convergência das Eras climática, digital-tecnológica e biológica encerram. A humanidade terá que construir a descarbonização da matriz energética global, promover a neutralização de emissões de gases de efeito estufa dos seus sistemas econômicos e, ao mesmo tempo, adaptar-se, de forma justa, inclusiva e resiliente, a um mundo exposto às incertezas e aos riscos climáticos. Isso requer, além do pragmatismo na escolha de soluções, o agir no curto prazo, com base em pactuações políticas que excluam o negacionismo e retrocessos futuros nas novas trajetórias de desenvolvimento. É preciso construir um imaginário político contemporâneo que considere as diferenças e a diversidade das sociedades e a convergência de visões e de interesses comuns.É preciso ser crível, definidor de deveres e de obrigações e condutor de solidariedade.
Sob a perspectiva da democracia, a emergência climática revela um desafio de dupla natureza para os países: reduzir emissões daqueles cujo modelo de vida é incompatível com a capacidade de suporte do planeta, ao mesmo tempo em que, garante maior prosperidade a contingentes populacionais até hoje marginalizados, o que inclui acesso a bens e serviços, sem permitir que isso incorra no aumento de emissões diante de um mundo que não é mais capaz de suportá-las. Não se trata de uma tarefa simples, em especial pelo potencial de captura do processo político por grupos de interesse: os maiores beneficiários do “business as usual” são justamente aqueles que têm maior acesso ao mundo político. A complexidade da equação não pode ofuscar o desafio de natureza ética e moral que nela reside: a possibilidade de instrumentalização da emergência climática de modo a justificar a perpetuação de desigualdades, sob o argumento de que a inclusão e a cidadania, presumidamente carbono intensivas, são incompatíveis e indesejáveis diante do aquecimento do mundo.
Assim, uma pergunta que se coloca a todos é: que níveis de desigualdade estaremos dispostos a tolerar? Ou, até mesmo, cabe tolerância às desigualdades sob a perspectiva da justiça ambiental-climática?
A instrumentalização da emergência climática também pode servir a outros fins, como redução das liberdades e promoção do discurso do medo, provocando saídas fora da democracia. Países preocupados com a questão climática devem, portanto, se preocupar com a erosão da democracia: autocracias tem mais facilidade para adotar medidas populares às custas do clima, além de não terem incentivos para reportarem adequadamente seus níveis de emissões, uma vez que a capacidade da sociedade civil e da imprensa de contestar os dados oficiais é baixa. Além disso, governos que promovem participação política, livre fluxo de informações, uma sociedade civil ativa e mobilizada, processos de avaliação de seus representantes eleitos e conseguem mantê-los responsabilizados pelos seus atos são mais propensos a serem bem-sucedidos na tarefa de lidar com um assunto como esse, de alta complexidade.
Considerando o fato de que acordos multilaterais climáticos, como o Regime Climático Global, o Protocolo de Quioto e, mais recentemente, o Acordo de Paris, têm baixo mecanismos de enforcement, retrocessos devem ser evitados. Se democracia importa, como a ciência tem demonstrado, países que se preocupam com as consequências do aquecimento do mundo devem cuidar para mitigar a erosão democrática em curso, de modo a evitar trazer desafios adicionais para a governança global do clima. Uma aliança entre as democracias é, portanto, desejada e motivada. Foi a convergência em torno da compreensão de que o aquecimento do mundo era uma ameaça à vida na Terra que permitiu, em 2015, que uma concertação de países desse origem ao Acordo de Paris. É preciso que democracia seja vista como um elemento dessa equação e como uma das variáveis a impactar nossa capacidade de implementá-lo. Uma aliança desse tipo requer ir além dos contornos do imaginário político da constituency climática e tem impacto direto nas liberdades individuais e coletiva da sociedade.
É necessária a construção de um entendimento comum sobre o desenvolvimento de inteligência artificial e padrões para o seu uso, em especial pelo efeito devastador que os mesmos podem ter na própria democracia: proliferação dos fake green, do negacionismo climático e de imagens e áudios falsos atribuídos a políticos engajados na transformação dos processos de desenvolvimento, por exemplo, aprofundando a crise de confiança já em curso. É importante, ainda, criar medidas restritivas de exportações de tecnologia de vigilância, como reconhecimento facial, para países não democráticos, criar entendimento sobre o combate à desinformação digital, requerendo por exemplo que as plataformas digitais, que dominam o palco de parte das disputas políticas atuais, informem ativamente aos governos esforços de governos estrangeiros e atores não estatais para manipular a opinião pública. Ainda, é fundamental criar mecanismos compartilhados de prevenção à interferência eleitoral, de modo a tornar mais rígidos os requisitos de divulgação à publicidade política online.
E o Brasil? Está de volta ao mundo, à comunidade internacional, por dever da sua democracia. Uma economia emergente e candidata a estar entre as maiores do mundo, que detém singularidades e alternativas para enfrentar a crise climática-ambiental. Para isso, deve se ocupar do futuro e superar o passado, a partir de uma reflexão sobre sua ambição política. Devemos abandonar a ideia de país do futuro e nos concentramos em entender melhor os caminhos para estar melhor no futuro.
Só poderá ser visto e reconhecido como potência verde num mundo de baixas emissões de gases de efeito estufa se houver dedicação a isso. Só pode ambicionar ser líder se construir as condições políticas necessárias para ser escolhido como país-líder. E isso exige mais do que ambição política. Demanda visão de desenvolvimento, projeto de inserção internacional baseado em softpower, uma nova relação entre a sua sociedade e o Estado, fortalecimento da sua democracia e proteção, fortalecimento das instituições e de suas políticas públicas, o real enfrentamento das desigualdades e o realinhamento de valores orientados pela equidade, justiça social e ética.
Sendo um país megadiverso, detentor de riquezas naturais e da parte mais expressiva da maior floresta tropical do planeta, a Amazônia, com uma diversidade social e cultural importante e com fronteiras pacificadas há mais de 150 anos, o país é ator-chave para a segurança climática do planeta. Estar de volta à comunidade internacional e sendo recebido com certo otimismo deve possibilitar que o futuro esteja de volta ao país. Isso demandará um novo contexto político do Brasil, pautado por arranjos inovadores de governança pública e de modelos de negócios, por uma outra relação da sociedade com o Estado brasileiro, por postura de renovação e de fortalecimento de sua democracia, além uma compreensão objetiva e fundamentada dos riscos ambientais e climáticos nas suas trajetórias de desenvolvimento sustentável.
Para uma sociedade que dispõe de alternativas, a agenda climática deve ser percebida como oportunidade e um desafio de mudança que precisa ser ampla, ambiciosa e robusta, indo além de sua economia e do enfrentamento às desigualdades sociais e ambientais. A Amazônia e o Atlântico Sul representam desafios para o Brasil atual que vão além dos domínios de territórios e do exercício tradicional de sua soberania nacional. É preciso que o país desenvolva um novo olhar sobre o seu capital natural e compreenda os desafios impostos pela dimensão global-planetária, além da sua diversidade social e cultural. As possibilidades de seguir adiante numa economia global de baixo carbono são inúmeras para o Brasil. Mas, para isso, o futuro precisa ficar mais claro para a sua sociedade e lideranças.
Discutir o futuro na perspectiva da tripla crise ambiental-planetária significa viabilizar a produção de vida no planeta. O Brasil é o país que mais produz vida no planeta e de forma mais diversa. As suas opções sobre o futuro devem ser balizadas por essas premissas, com trajetórias mais inclusivas e justas de desenvolvimento. Se por um lado, a reestruturação da sua economia deve orientar-se pela mitigação das emissões de gases de efeito estufa pelos setores econômicos, por outro, deve assegurar a emergência das novas economias, notadamente a bioeconomia, a economia circular e a economia da longevidade. O desmatamento precisa ser vencido e ficar para trás em definitivo. As trajetórias de desenvolvimento devem buscar ter a natureza como aliada, crescer com a natureza e não contra ela, restaurar ecossistemas, avançar na valoração do capital natural e na valorização dos seus povos originários e tradicionais. As soluções do Brasil passam pela sua ainda abundante natureza e diversidade social e cultural e tem na proteção da Amazônia, da Mata Atlântica, do Cerrado, da Caatinga, do Pantanal, do Pampa e dos ecossistemas costeiros e marinhos a senha para o que se espera do futuro.
A renúncia ao negacionismo climático e à agressiva ignorância que buscou ocupar o país no seu passado recente é uma indicação importante para um país e uma sociedade que se movimentam na direção de mudanças. Diante de um mundo que muda, a democracia brasileira também precisa ser capaz de fazê-lo visando o seu fortalecimento. Um novo momento da democracia no Brasil passa por alguns elementos: a revitalização dos partidos políticos, desenhados para serem guardiães do regime democrático e que muitas vezes compactuam com a sua fragilização. É essencial a criação de meios para tornarem a política mais diversa e inclusiva, quebrando o monopólio político de determinados grupos na representação, e dando espaços para a representação da diversidade da sociedade brasileira. Não há democracia que funcione sem partidos políticos e não nos enganemos achando que a tecnologia vai permitir participação direta, renunciando à representação: não vai, pelo menos não num futuro próximo. Ou devemos ser criativos para imaginar outras formas de agregação de preferências e representação de interesses.
O fortalecimento de nosso regime vai demandar também a criação de novas categorias de direitos, diante de um mundo digital e dos desafios climáticos e ambientais. Entre eles, o direito de saber e de decidir quem sabe sobre as nossas vidas, vulnerabilidades, riscos, nossas possíveis escolhas e garantir que os Estados nacionais consigam proteger essas informações e dados.
Sua revitalização demanda também a construção de um novo imaginário político, capaz de colocar clima como um componente central do desenvolvimento econômico do país, com ganhos reais de prosperidade, e que supere duas percepções equivocadas e limitantes: a de que se trata de um tema ambiental transpondo, portanto, o estreitamento dessa visão, e a percepção de que essa é uma causa da esquerda, com a qual atores de outras posições no espectro político-ideológico teriam pouco a se envolver.
Ainda, será preciso evitar o greenwishing e calibrar o elemento catastrófico, de modo a criar sensibilização e sentido de urgência nos cidadãos e tomadores de decisão, mas sem impulsionar a paralisia típica das situações em que como os problemas parecem grandes demais a serem resolvidos, nada é feito. A construção do imaginário deve mobilizar pelas oportunidades e soluções e não paralisar pelas suas dificuldades. A emergência climática precisa ser encarada como um problema a ser resolvido e não como uma catástrofe inevitável à espera de todos.
Uma democracia melhor exige, ainda, uma qualificação de nossos tomadores de decisão, figuras sobre as quais as pressões tendem a aumentar nos próximos anos, num processo de educação política talvez nunca antes experimentado.
A emergência climática impõe decisões não só impopulares como com consequências e benefícios percebidos somente no longo prazo, o que destoa do senso de curto prazo, movido por regras e interesses eleitorais, que regem a vida cotidiana de nossos parlamentares e executivos. A transição para uma economia de baixo carbono é intensiva em minerais e aqui estão algumas das maiores reservas de minerais críticos e estratégicos do mundo. A eletrificação dos sistemas de transporte é fortemente dependente desses minerais, assim como a segurança alimentar passa pelos fertilizantes minerais. A demanda por energia num mundo digital-tecnológico será crescente e as novas ferramentas de inovação, como a inteligência artificial, demandam mais energia do que as ferramentas já de domínio da sociedade global.
Serão nossos tomadores de decisão, os já eleitos e os do futuro, aqueles que farão escolhas sobre como, onde e se explorar esses recursos, se continuaremos nos comportando como mero exportador de commodities, sem capacidade de transformar e agregar valor ao que retiramos do solo perpetuando o modelo extrativista que nos trouxe até aqui, ou se faremos investimentos em pesquisa, ciência e educação, bem como as escolhas políticas necessárias para alterar o rumo do nosso desenvolvimento. Serão eles também a decidir, por exemplo, se nossa necessária transição industrial verde poderá se beneficiar de tecnologia e financiamento externo, fruto de acordos comerciais em discussão, como no caso do Mercosul e dos advindos da cooperação bilateral, ou se isso não será possível.
Num mundo veloz, de polarização e desinformação, convém encontrar meios de evitar a captura da discussão política por reducionismos. Se nenhum dos cenários futuros para limitação da temperatura global a até 2ºC é possível de ser atingido sem a completa descarbonização da matriz global de energia, perguntas sobre quanto petróleo ainda precisamos para a nossa transição, quando estima-se que ela será feita e como podemos neutralizar emissões de carbono vindas de eventuais novas explorações deveriam ser algumas das existentes no cardápio dos nossos tomadores de decisão, mais do que somente as crenças pessoais sobre o tema. E essa decisão é da sociedade devidamente instruída e informada e orientada por propostas inovadoras de modelos regulatórios de concessão pública.
A revitalização da nossa democracia demanda, portanto, tomadores de decisão capazes de entender os movimentos geopolíticos do mundo, de frequentar os espaços onde as decisões estão sendo tomadas e de nelas intervir, não como expectadores de decisões que nos afetarão, mas como agentes das escolhas. Exige, ainda, não só coragem daqueles que estão hoje tomando as decisões sobre o nosso amanhã, mas também disposição de se ocupar do futuro, produzindo uma mudança de visão que os permita trazer trazê-lo para o presente, se comportando como representantes dos interesses nacionais mais do que somente defensores dos interesses de seus locais de origem.
Diante de tantas transições e movimentos e de um mundo em mudança, o futuro seguramente não é mais como era antigamente. Aqui, nos preocupamos em olhar para tudo aquilo que ainda precisa mudar. São as oportunidades que movem o mundo e elas também se movem.
*Izabella Teixeira é bióloga, ex-ministra de Meio Ambiente, Senior Fellow do Instituto Arapyaú, Conselheira do CEBRI – Centro Brasileiro de Relações Internacionais e Prêmio ONU de Liderança Política Global (2013).
**Mônica Sodré é cientista política, diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade – RAPS e Senior Fellow do CEBRI – Centro Brasileiro de Relações Internacionais.
1 V-DEM Institute: Democracy Report 2023 – Defiance in the face of autocratization. https://v-dem.net/publications/democracy-reports/